Imagem: http://grandestextos.blogspot.com/           Já passa da hora de dormir. O calor lhe incomoda, abre a janela. Tudo tão escuro! ...

A linha do tempo, a linha e o tempo

Por | 19:27
Imagem: http://grandestextos.blogspot.com/
          Já passa da hora de dormir. O calor lhe incomoda, abre a janela. Tudo tão escuro! Lá fora o vento é forte, balançando as folhas da palmeira. Só há uma em seu quintal. Triste quintal, que marca a presença de uma solitária moradora, sem cães ou gatos, sem tempo ou capricho. Quintal abandonado! Folhas secas no chão. A bola murcha no canto, mostrando que havia uma criança brincando ali, outrora. A bicicleta enferrujada na chuva, o banco de madeira se dissolvendo. O velho canteiro de rosas abrigando as ervas daninhas.
          Ela não conseguia dormir. Rolava de um lado a outro, olhava para o teto, enfiava a cara no travesseiro, e nada do sono aparecer. Uma lágrima dolorida brota em seu rosto, rolando sobre sua face pálida e morrendo no lençol encardido.
          Levante-se, acende as luzes da casa toda, procura por todo canto um sinal de esperança. O telefone está mudo. Seu celular há muito não recebe chamada. As últimas cartas são de cobranças. Um velho baú de recordações está guardado na garagem. Dentro, os ingressos para aquele show ainda estão lacrados. As lembranças de sua lua de mel. O cupom de desconto de seu restaurante preferido nunca foi utilizado. O primeiro enxoval de seu bebê. As fotos não mentem. Um dia amou, e muito foi amada.
          Ela se lembrava de cada detalhe: eles voltavam da viagem que ela não pode ir. O motorista perdeu o controle, e não conseguiu parar a tempo. O trem estava passando. O barulho do choque mobilizou todo o bairro. Curiosos apareceram aos montes. Bombeiros, paramédicos, policiais, jornalistas. Em dez minutos toda a região estava ciente do grave acidente. O cruzamento da linha ficou marcado para sempre. Ela se lembrava de cada detalhe. Inclusive de ter visto o horror nos olhos de uma menina de seis anos. Por quase um minuto, ela encarou a menina. Por que estaria ali?

          Do outro lado da cidade, a menina, já mulher, também não estava tendo uma boa noite. Rolava de um lado para o outro, suando frio. Estava em um pesadelo. Sonhava com aquela noite. Tudo ocorria da mesma forma: A buzina, o choque, os gritos, a sirene, o choro, a tristeza... e o olhar desesperado daquela jovem mãe que perdera o filho e o pai. Em seu sonho ruim, a mulher, antes menina, gritava por socorro, gritava para a jovem mãe, que não lhe ouvia. A jovem mãe não respondia, mas também não podia conter as lágrimas por saber que não era apenas um sonho ruim. A menina não sabia seu nome, mas lembra daquele olhar. A mãe não conheceu a menina, mas não se esquece de seus tristes olhos.

          A jovem mãe pega o carro e dirige até o local do acidente que ocorreu há treze anos. Pára bem em cima da linha do trem, hoje desativada. Não há buzinas, não há faróis acesos, não há gritos, não há sirenes nem pessoas correndo, mas fica a dor. O apito do trem, então soa. Mas como poderia? Está desativada! Já não é mais a mãe ao volante, é a menina-mulher. É apenas mais um sonho ruim, misturada às cenas de uma lembrança ainda pior.

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