A voz metálica anunciava a próxima estação. Desembarque pelo lado esquerdo. Rostos estranhos, parados, conversando, o burburinho aumentando, risos frouxos ou contidos, alguns reclamões nossos de cada dia e todos cansados por mais um dia na rotineira cidade da capital. Eu os observava atentamente, até que avistei, parcialmente, um rosto conhecido, um velho amigo.
Uma bolsa, no meio do caminho, pertencente a uma senhora moça vestida de branco e sapatilhas azuis, interrompia boa parte do rosto do garoto, mas reconheci a sobrancelha, alinhada da mesma forma que a do meu amigo. A orelha esquerda tinha o mesmo tamanho e formato. O cabelo igualava o corte recém adotado pelo meu velho conhecido. O tom da pele não poderia ser outro. Até mesmo a forma de mexer a parte de trás do cabelo me fez ter a certeza: era ele! E a roupa? Uma camiseta qualquer coberta por um colete marrom: sem dúvida era ele!
Mas então... por um instante, a certeza mudou de forma: avistei uma de suas mãos. Definitivamente, não era a mão dele! Não poderia ser! As mãos do meu amigo possuem os dedos longos, finos, tortuosos, por assim dizer. Bem diferentes daquela que eu avistava. A moça de vestido branco e sapatilhas azuis pegou a sacola da Brooksfield que o rapaz de colete marrom e mãos pesadas segurava. Aguardei a próxima estação com certa ansiedade: queria que ela saísse logo da frente de minha visão. Não para constatar se aquele era meu amigo ou não, mas eu queria saber se minha teoria sobre suas mãos estava certa. De fato, estava: não era meu amigo.
Tal caso levou-me de súbito à uma estranha revelação sobre mim mesma: reparo nas mãos das pessoas. Comecei a mapear, mentalmente, as mãos dos mais próximos a mim. Dedos finos, longos, grossos, tortos, curtos, com cicatrizes, manchas, pintas... pintas! As mãos de alguém, em especial, que passeavam pelas minhas lembranças, chamou-me a atenção.
Não vejo aquelas mãos há alguns meses, mas posso desenhar perfeitamente seu contorno. Em seu anelar da mão direita, há uma pinta. Correndo o olhar, subindo o braço, outra pinta completa o mapa, com cerca de um palmo aberto de distância entre uma e outra. Um lindo desenho perfeitamente simétrico. As mãos em si são finas, dedos longos, até um pouco tortuosos, também, mas não como as do meu amigo. Há uma característica única naquelas mãos que ainda não sou capaz de identificar, mas saberia reconhece-las em qualquer lugar.
E sentir, também.
Ainda posso sentir aqueles dedos finos entrelaçarem-se aos meus enquanto caminhávamos pelas ruas, ou parávamos em frente a uma vitrine para namorar algum produto. Ou no ônibus, quando ela encostava sua cabeça em meu ombro, e, por vezes, chegava a dormir. E nossas mãos permaneciam entrelaçadas durante todo o trajeto. Ou então apoiava sobre minhas pernas.
E me lembro também da temperatura. Mudava conforme o humor. Geralmente, eram quentes, como seu forte gênio. Suas mãos esfriavam apenas quando estava triste, ou desanimada, ou carente. Eu as esquentava com minhas mãos quentes. O que era estranho, pois eu sempre tive as mãos frias, mas ali, ao lado dela, parece que meu corpo em tudo se adaptava para ela, por ela.
O rapaz que parece meu amigo, mas possui mãos diferentes, levantou e despertou-me de tantos devaneios. Devaneios bons, devo confessar. Quase lhe sorri como forma de agradecimento, quando ele passou por mim para sair do trem. Retornei o olhar para o lugar onde ele estivera sentado antes. Uma moça ocupava o banco. Cabelos longos, castanho escuro, óculos vinho transparente, jaqueta jeans azul por cima de camiseta branca, all star branco com desenhos coloridos. Tão parecida em alguns aspectos, mas... Mãos branquelas e dedos curtos. Sem graça. Próxima estação: Jabaquara. Hora de ir para casa.