O sol bem ao centro do céu. O relógio marca exatamente 12h. A igreja, a três quadras dali, badala o sino em 12 longos toques. Baixinho, o inspetor de 60 anos, simpático velhinho com o bondoso aspecto de vovô, varre o pátio da escola de fachada azul. Dona Maria, cozinheira há mais de 30 anos, prepara a merenda para as crianças da tarde. Cinthia e Gabriela, ajudantes de cozinha, esperam na saída com o carrinho carregado de mupy. Bate o sinal, as crianças que passaram a manhã com seus professores, correm para o portão, pegam os saquinhos de mupy e se dirigem aos braços de seus pais. Todas entre 3 e 12 anos. A maioria, 6, como eu.
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Lembro-me perfeitamente os detalhes. Eu não tinha pressa em sair da sala. Sabia que meu pai ainda não estaria lá. Ele me buscava sempre depois das 13h, em seu horário de almoço. Eu chegava a ver as crianças da tarde. Vários rostinhos novos, animados para mais uma tarde entre pinturas, futebol e as primeiras letras, os primeiros números. Não tinham nomes para mim. Apenas esse: “as crianças da tarde”. Exceto uma. A Ruivinha. Era assim que eu a chamava. Olhos castanhos claros, esverdeados. Olhar superior e uma beleza incomparável. Ela nunca falava comigo. Apenas me olhava intrigada. Eu retribuía o olhar.
Certa vez, minha professora, a Shirley, sentou-se à mesa de merenda, comigo, enquanto eu esperava meu pai e saboreava o delicioso mupy de maçã, meu preferido. Ela era a única que sabia do meu namoradinho secreto, o Caio. Coisa boba de criança. Eu nem sabia o que era namorar. Foi a ela que eu contei que Caio tentou me beijar. Era um absurdo crianças da nossa idade namorando. Beijando na boca, então... Shirley compreendeu e me incentivou a crescer, esperar alguns anos antes de aceitar o primeiro beijo. Ela me disse que deveria ser com um alguém especial. Hoje eu tenho vontade de encontrar minha professora e dizer “Shirley, você tinha razão. Deveria ser com alguém especial. E foi”.
No dia seguinte, no mesmo banco, a professora se sentou, bem ao meu lado. Perguntou-me se eu já havia rompido com o Caio. Antes que eu pudesse responder, a Ruivinha apareceu. Meia hora mais cedo que o normal. Teria passado direto e sentado na outra ponta do banco, não fosse o convite da professora para juntar-se a nós. Anna Luisa. Esse era seu nome. Ainda hoje fico avermelhada toda vez que me lembro de que a minha professora partilhou com a desconhecida o meu segredo. Ela queria que a Ruivinha, ou melhor, a Anna, me ajudasse a tomar uma decisão. No dia a seguinte, Anna estava lá, à minha espera, na saída. E assim passamos todos os dias daquelas três semanas seguintes. Dias antes de entrarmos em férias, Caio me contou que iria morar em São Paulo, com a família. Nunca mais nos vimos.
Em 98, Anna e eu já tínhamos criado laços. Nunca tive, até então, uma amiga como ela. Víamo-nos todos os dias, entre as 12 e as 13 horas. Eu estava completando 8 anos de idade. Ela, 10. No ano seguinte ela foi para o ginásio. Eu fui transferida para o colégio novo, perto de casa. Foi nossa primeira despedida. Passamos os dois anos seguintes sem contato. Na virada do século, desejei reencontrá-la. Mas não tinha nem seu telefone. Século novo, colégio novo, vida nova... um velho rosto. Lá estava a Ruivinha. Olhos castanhos esverdeados, olhar superior e uma beleza incomparável. Essa era a Anna. A minha pequena Anna Luisa.
Foi aos meus 13 anos, ela com 15, que tivemos a tal ‘conversa’. Ela confessou estar confusa. Logo pensei que fosse a relação com os pais. Não via a mãe desde que tinha 5 anos e estava brigando muito com o pai, nos últimos meses. Mas era um pouco mais complicado.
- Acho que não gosto de homem, como deveria gostar.
- Como assim, Lu?
- Tenho vontade de beijar garotas. Tenho vontade de andar de mãos dadas com uma garota, sabe? Sei lá. Não tenho vontade de ficar com um garoto. Queria que meu primeiro beijo fosse especial. E não me vejo com nenhum garoto. Não me vejo dando meu primeiro beijo com um garoto. Olha, não quero que nada mude entre a gente, mas não consigo mais esconder. Eu tenho vontade de beijar você. Você deve me achar muito estranha, agora, né?
Na verdade, não. Anna só tinha a coragem que eu achei que nunca teria. Falar sobre sentimentos, ainda mais sobre esses. Eu também tinha vontade de beijar uma garota. Não uma garota qualquer, mas ela. Aquele dia terminou como um ponto de interrogação. Eu não sabia o que dizer quando a visse novamente. E o beijo, seria no rosto? Ou melhor, um aperto de mão? Um aceno, talvez? Tudo tão confuso. Não nos víamos mais nos corredores do colégio. Acho que nós duas estávamos nos evitando. Era uma quinta-feira. Se me lembro bem, em outubro. Eu estava pegando minha bicicleta, quando ouvi chamar meu nome. Ela agiu como se nada tivesse acontecido. Queria me acompanhar até minha casa, como sempre fazia.
A rua era larga. O canteiro central estava coberto pelas palmeiras. As casas de veraneio, vazias. Gostávamos dali porque era calmo e silencioso. Havia um banco, embaixo do coqueiro da terceira casa da esquerda, na segunda quadra. Costumávamos sentar ali todas as tardes, esperando o sol do meio dia baixar. E então nos sentamos. Eu me lembro que, naquela tarde, conversamos sobre nossos planos, sobre faculdade, ter 18 anos, aproveitar a vida, viajar, conhecer a Itália, a Irlanda (a mãe dela é irlandesa). Falamos sobre nossos pais, sobre a escola, sobre os cursinhos, meu time de vôlei, o time dela de futsal... não houve um toque, não houve um olhar. Simplesmente aconteceu. Era nosso primeiro selinho, não era um beijo de verdade, mas era especial. A professora Shirley tinha razão.
Caminhamos duas quadras. Foi quando eu percebi que estava a uns três passos adiante dela. Ela estava inquieta, olhando para o chão, chutando pedregulhos da calçada, com um sorriso molhado e certa tristeza no olhar. Larguei a bicicleta e voltei os três passos. Ela levantou a cabeça, olhando nos meus olhos e perguntou:
- Promete não esquecer disso?
- Disso o quê?
- De tudo! De quando nos conhecemos, de quando brigamos, de quando contamos piadas, de quando eu pulo no seu colo, desse beijo...
- Se te conheço bem, você nunca me deixará esquecer – havia um sorriso na minha fala, tentando disfarçar o medo de perguntar o porquê daquela conversa e procurando aliviar a tensão. Mas ela não sorriu.
- Talvez eu não esteja aqui para te lembrar.
- Do que você está falando?
- Vou morar com minha mãe. Na Irlanda.
Aquela foi nossa segunda despedida. Não consegui dizer mais nada. Só abracei e chorei. E chorei tanto que as lágrimas não me permitiram vê-la partir. Mas eu sei que ela também chorava. Chorava muito. Saiu quase que correndo daquela rua.
Um ano se passou. Eu estava com quatorze anos quando dei meu segundo selinho. Namorei a Camila por oito meses. Ela tinha problemas com drogas e saiu da escola pouco depois que terminamos. Na verdade nem era, de fato, um namoro. Apenas estávamos juntas. Curtíamos uma a outra. Camila resolveu o problema com as drogas e engravidou aos dezesseis anos. Não cheguei a conhecer a filha dela. Recebi uma carta com uma foto, meses depois. Nesse tempo, minha vida havia voltado ao normal. Anna retornou da Irlanda em 2 de setembro de 2006. Lembro-me bem da data porque fizemos uma festa surpresa para dois colegas de sala que faziam aniversário. Ela simplesmente apareceu na festa, sem avisar.
Nos beijamos em 22 de setembro, mas eu já havia me apaixonado por outras pessoas. Ou melhor, por outra pessoa. Meu amado Ser, meu primeiro beijo de verdade, o que causou nossa terceira despedida. No início de 2008 voltamos a nos falar. Ela morando na capital. Eu, no litoral. No ano seguinte, entrei na faculdade e fui morar na capital. Estávamos começando a nos entender, quando tudo de repente acabou após uma traição e uma gestação. Foi a quarta despedida. Ela perdeu o bebê aos 4 meses. Pouco depois, perdeu a mãe. O pai, decepcionado, se isolou.
Com o passar dos anos, as coisas foram melhorando. Os problemas, se revolvendo. A relação com o pai, se reestabelecendo. Aos poucos fui enxergando, novamente, a minha Ruivinha naquela Anna mais velha. Infelizmente não possuímos o poder de controlar a vida por completo. Aos 24 anos, Anna foi diagnosticada com LMA – leucemia mieloide aguda, um tipo de câncer com baixo índice de mortalidade. O tratamento correto, as sessões de quimioterapia indo bem. Eu a veria na segunda-feira, 3 de setembro de 2012, após a faculdade. O telefone toca às 11 horas. Anna se foi. E eu não dei meu último adeus.
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