Sempre tive vontade de participar de um sarau, mas a sociedade têm se transformado drasticamente nos últimos anos. O que era bom, natural, comum e essencial no século XIX, quase já não é mais conhecido. Se perguntar a uma criança o que significa sarau, provavelmente ela responderá com outra pergunta: é uma doença, igual sarampo? Não, não é uma doença, pelo contrário, é uma riqueza de saúde mental, psicológica, de alma... enfim! Você, assim como a criança, também não sabe o que é? Já ouviu falar e imagina a cena de um pequeno grupo de pessoas utilizando trajes antigos, com linguajar ultrapassado e penteados engraçados? Não digo que você viajou na sua imaginação, pois antigamente realmente esta era uma cena muito comum, mas este não é seu significado. Não se preocupe em procurar no Google ou recorrer ao Wikipédia... explicarei o que é sarau.
Sarau é um evento cultural, em que o grupo de pessoas discute música, poesia, dança, literatura, pintura, teatro e qualquer outra forma artística colocada em pauta. Geralmente os saraus são realizados em casas particulares, à tarde ou início de noite, em que as pessoas apresentam seus trabalhos e exalam suas veias artísticas, transmitindo seus conhecimentos com aqueles que compartilham da mesma opinião crítica ou gosto cultural. Os saraus estão voltando às vidas sociais do século XXI com mais descontração, mais ingredientes pragmáticos e mais elementos culturais, porém as pessoas ainda não conhecem essa prática rica e prazerosa.
Nesta última quinta-feira estive reunida com quatro grandes amigas no Batidão, bar e restaurante localizado à Vila Mariana, próximo ao Metrô. O motivo da reunião era puramente matar as saudades, após pouco mais de um mês de férias e também comemorar a recente notícia de que tais férias haviam sido prorrogadas por mais uma semana. Em ambiente descontraído, com outras quatro estudantes de jornalismo que compartilham comigo não apenas a profissão, mas também a paixão pela escrita, pela música, pela arte em geral, a noite seguia agradavelmente, com o bom papo em mesa, as pessoas alegremente à nossa volta e os carros passeando e abrilhantando a noite nas ruas da grande cidade, palco de inúmeras paixões e inspirações.
Passamos por um momento que desejo descrever em poucas palavras, tal a emoção que me convém, mas sei que não conseguirei. Em nossa mesa aproximou-se um senhor, notavelmente calejado pela vida, entregue ao mundo unicamente segurando as mãos de Deus, o que o tornou forte para continuar seguindo seu caminho mesmo com as desavenças que passou com a própria vida. Estava este senhor receoso em se comunicar conosco, mas nós encorajamo-lo a falar e então seu desabafo carregado de emoção nos permitiu entender sua alma aflita. Este senhor mora em Mogi das Cruzes, e estava à São Paulo catando papelão. Dependia da venda desse material para poder, ao fim do dia, voltar para casa e se alimentar. Porém alguém, talvez por puramente maldade, roubou-lhe o carrinho que continha sua pequena fortuna diária de sobrevivência. Sem ter como voltar para casa, caminhou pelas ruas da capital pedindo trocados aqui e ali, gentilmente, mas os corações impuros das pessoas, extasiadas e sufocadas em egoísmo, caçoavam de sua situação, negando-lhe aqueles poucos trocados que não faria falta a nenhum deles, mas uma enorme diferença àquele pobre senhor. Sou contra esmolas, por saber que a maioria é destinada à compra de álcool ou drogas, mas a maneira com que aquele senhor se aproximou e seu olhar receoso me permitiu confiar em sua palavra. Não apenas confiar, mas compartilhar com minhas amigas a emoção daquele honesto trabalhador brasileiro. Demos-lhe o necessário para voltar para seu lar, que se despediu de nós alegremente gratificado. A nós, aspirantes à jornalistas, restaram-nos emoção e comentários sobre a sociedade e sobre a vida. Ficamos, a partir daquele momento, extremamente sensíveis.
Minutos após aproximou-se de nós uma jovem senhora carregando em suas pequenas mãos a chave de sua felicidade. Contou-nos que havia ganhado, recentemente, um concurso de poesia, ou algo do tipo, confesso não me lembrar dos detalhes. Oferecia seus poemas aos estranhos para torná-los conhecidos, propagando à própria sorte sua alma poética e romântica. Foram três trechos que recitou. E o último, apesar de não me lembrar das palavras, mexeu um pouco comigo e com minhas amigas. Era singelo e melancólico, profundo e tristonho, amoroso e cético. Era agradável de ouvir, apesar de ter sido recitado por voz tão baixa e tímida. Àquela senhora desejo sorte e sucesso. Seu nome era Constance. Não consigo me lembrar do sobrenome. Mas torço em um dia poder ser conhecido e reconhecido no país. Foi-se.
Àquelas almas embriagadas de sentimentalismo e emoção, nada mais se podia faltar. Estávamos contentes com os dois últimos casos, e começamos a discutir um pouco sobre poesia. Eu escrevo. Gosto de escrever e gosto de mostrá-los às pessoas. Mencionei meus blogs pessoais e o blog que contribuo da nossa turma de jornalismo. Minha amiga Aninha, que está um semestre adiante, mencionou que também possui um blog pessoal. Já conhecemos o blog da Raquel. Patrícia tirou as teias do seu. A única que não escreve em blogs, mas comentou sobre o dos outros foi a Lívia. Mencionamos como temos colegas talentosos em nossa crescente e bem estimada faculdade. Estávamos orgulhosas de nossas próprias façanhas e capacidade. Patrícia lê um de meus poemas, em voz alta, que intitulei de Negação.
As coisas andavam a este pé, quando outro ilustre novato cultural apareceu em nossa mesa, trazendo à tiracolo seu mais recente filho: o livro Os dois minutos de Gasolina. Seu nome? Ricardo Carlaccio. Ricardo escreve, edita, publica e divulga seu próprio trabalho. E o interessante é que para divulgar, ele anda pelas ruas da cidade, muitas vezes sem destino algum, apenas mostrando e vendendo sua obra. Ainda não tive oportunidade de lê-lo, mas só pelo seu trabalho já fico desejosa em conhecer sua obra literária, e essa chance terei na semana que vem. Deixo aqui a propaganda: Quem quiser conhecê-lo, entre em contato comigo.
Após a retirada de nosso terceiro novo amigo, Lívia lê outro poema meu escrito em inglês, ao qual dei o título de Hey, Psiu! Recebi comentários felizes a respeito deste, e mostrei então a tradução, também recitado pela Livinha. Aninha, tímida com seus poemas nas mãos, não mostrou nenhum, mas falou-nos de seu blog. E conversamos o restante da noite sobre poesia, blogs, talentos, heróis, e até música. A noite terminou, e sem nos dar conta, havíamos realizado um sarau, em espaço público, com presença de artistas desconhecidos e variados: um artista da vida: trabalhador brasileiro; um artista da alma: jovem senhora; um artista das ruas: papai coruja e as artistas de estudos e preparação, de crítica, de sociedade e de companheirismo e amizade!