Capa do CD Abbey Road, The Beatles - 1969 |
Não conseguia distinguir o som das vozes da garota e do rapaz ao meu lado, nem me era possível identificar suas diversas características, mas sabia que eles estavam ao meu lado. Eles conversavam alto, mas estavam fora do meu campo de visão. À minha frente, aquela movimentação parecia não ter seu fim. Pessoas que nem se conhecem, se trombando e se encarando nas ruas. Flertes trocados pelos cinquentões, crianças segurando as mãos de suas mães. E a ideia de que, provavelmente, nunca mais veria quaisquer daquelas estranhas personagens urbanas.
O casal ao meu lado ainda falava, e eu continuava sem prestar atenção na conversa. Mas uma palavra dita, exatamente num silêncio geral da avenida, em que os motoristas ficaram tranquilos e pararam de buzinar, os motores decidiram ficar em silêncio e tudo o que se ouvia era o som das aves ao norte, longe da conturbada vida da capital, me fez despertar de meu momento ilusório. "Saudade". Ela disse 'saudade'. E isso me fez lembrar o motivo de minha ida àquela avenida. Quatro anos e nove meses sem colocar os pés naquela região. Quando o notíciário anunciava a rua que ela morava, eu desligava a TV. Aquelas fotos estão guardadas num baú atrás da caixa de ferramentas de meu pai, na garagem. Seu nome, tentei esquecer.
O restaurante, ao lado da livraria, já não existe mais. Sempre jantávamos ali. E depois comprávamos um livro de poesia para recitar no caminho. A calçada mudou de cor. A fachada era menor. As pichações já não são mais as mesmas. O Seu João, da padaria, se aposentou e vendeu o lugar. Agora funciona ali uma oficina mecânica. A banca de jornais está desativada. Os vidros da velha joalheria estão quebrados. As árvores do canteiro central deram lugar a esculturas de cimento. A faixa de pedestre, bem à minha frente, antes me fazia lembrar a rua Abbey Road, em Londres, que virou capa e título do CD dos Beatles em 1969. Hoje mais parece um código de barras sem número perdido no centro da cidade de São Paulo, ampliado. Toda a rua perdeu aquele aspecto de alameda, que tanto me encantava. Penso que talvez ela também tenha mudado. Afinal, foram quase cinco anos sem contato.
Não gosto de me lembrar do dia em que a vi pela última vez. Eu estava nervoso, ela também. Brigamos como nunca havia visto alguém brigar. Ela estava chateada pelo meu ciúme e eu estava possesso por descobrir que mentira no dia em que eu a pediria em casamento. Na noite anterior ela havia saido com amigos, e encontrou um ex. Soube disso por pessoas que eu considerava amigos. Eles só queriam nos separar, e conseguiram. Só agora posso assimilar as coisas perfeitamente. Eu a deixei sozinha, naquele portão marrom, que agora é de alumínio, chorando, me pedindo perdão. Eu partia com a sensação de que nunca mais seria feliz novamente. E acredito que ainda não sou. Aceitei a proposta de estudar no exterior, e fui embora, para nunca mais voltar. Mas a saudade me buscou. Cada minuto naquele país frio me fazia esquentar a ideia de que eu voltaria, e que ela iria me perdoar. A primeira coisa que passou pela minha cabeça foi procurá-la, quando voltasse para casa. Estranha sensação de regresso. Tudo diferente. A casa de minha infância sem meu pai, a lanchonete sem os amigos do tempo de minha adolescência, as rádios tocando outros estilos, a mudança de comportamento de toda uma sociedade...
O sinal estava fechado. Poucos segundos me distanciavam de meu primeiro amor. Era só atravessar a rua, e eu a veria novamente. Meu peito batia tão forte que mal podia suportar. Era mais intenso que o barulho do trânsito naquela movimentada avenida que antes era uma simples alameda. Nem mais os pássaros de meus devaneios eu podia ouvir. Eram só alguns quinze passos até a outra calçada, mas algo me detinha. Não tinha coragem de atravessar. Até que tudo ficou silencioso novamente, e então aquilo se tornou claro para mim. A garota repetiu a palavra "saudade", e em seguida disse "felicidade". De repente eu me via deitado na areia da praia, com meu amor ao lado, sorrindo e dizendo que seríamos 'eternamente um do outro, haja o que houver'. Aquela voz, já não ouvida a quase cinco anos. Me virei em sua direção e não pude compreender a situação, tomado pela frustração de não conseguir dizer uma única palavra sequer. Ela também não dizia nada. Olhou-me com aqueles belos olhos de curiosidade, surpresa e encabulada. Uma lágrima surgiu em seus olhos castanhos, seguido por aquele lindo sorriso que sonhei rever durante todo esse tempo. E aquele abraço, foi o mais sincero e mais prazeroso que já recebi. Enfim disse, em voz baixa, em seu ouvido, o que sempre tive vontade de dizer, mas nunca, nem mesmo durante o nosso namoro, consegui: "Eu te amo!".
Foi o fim. Ela se afastou de meus braços, já sem o sorriso nos lábios, e me apresentou seu noivo. Agora era ela quem partia, me deixando sozinho, com aquela lágrima dolorida, do outro lado da rua do antigo portão marrom, que agora é de alumínio.