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Sentada sozinha neste aeroporto lotado, olhando a porta de embarque, esperando que ela volte aos meus braços. Perverso sentimento que me toma numa fria tarde de inverno e faz questão de trazer, junto à geada, lembranças que ferem e perfuram meu inocente coração. Não há fogueira que queime amargas recordações ou que seja possível aquecer este peito carregado de decepções! Não deveria tê-la deixado partir. As lágrimas já não me permitem enxergar com exatidão. Melhor seria eu sair desse lugar, respirar um pouco de ar puro e reencontrar forças para poder continuar.
Do aeroporto meu pensamento voa ao Parque da Luz. Foi ali que nos conhecemos. Fotografando peixes e pássaros, as lentes da câmera encontraram os mais lindos olhos que já vi, a boca mais bela e o rosto mais perfeito, com o sorriso sincero e radiante. Encantei-me de tal forma que não poderia deixar passar. Ela entrou na Pinacoteca. Discretamente, eu a segui. E ali dentro, observando a exposição de Paula Rego, iniciou-se uma troca de olhares e, minutos depois, a mais embaraçada conversa. Britânica, seu nome era Laurie. Mestre em História da Arte pela Faculdade de Artes de Paris. Um café, um passeio para mostrar a cidade, troca de telefones, encontro marcado.
Foi uma das noites mais belas. Marcamos outro encontro, e depois outro, e mais um, e quando percebi, estava apaixonada. Levei-a ao teatro, certa noite. E, ao fim do espetáculo, ela me olhou com aqueles lindos olhos brilhantes de felicidade, aquele sorriso ainda mais belo que o normal, aquelas bochechas rosadas e o cabelo louro esvoaçando com a brisa da rua. Ela não queria um táxi, disse que preferia voltar a pé, para aproveitar o momento ao meu lado. Peguei levemente em suas mãos e a puxei junto a mim. Beijei-a, permitindo ao desejo falar mais alto. Ela retribuiu cada segundo. Abracei-a bem forte.
Nossos dias eram de pura luz, calor e amor. As noites eram banhadas com a paixão mais intensa e aquela vontade de tê-la sempre ao meu lado. Depois de um tempo mudou-se para o meu apartamento. Foram os dias mais lindos que vivi.
Mas então chegou o momento da despedida. Seu trabalho no país havia acabado. A oradora deveria voltar aos museus da Europa. Minha felicidade então se transformou em desespero. O dia da partida se aproximava. Na véspera ela me abraçou ainda mais forte que antes, e disse, baixinho, pela primeira vez, que me amava e um dia voltaria para mim. Fiquei sozinha, chorando pela sua partida, sem ninguém que pudesse me entender, me emprestar seu ombro amigo e me fazer entender que o dia do retorno chegaria.
Dois anos se passaram. Conversávamos uma vez por semana, ao menos. Mergulhada em trabalhos, pensava o menos possível em nós duas. Mas quando a noite chegava, era impossível não sentir a falta daquele meu pedaço de felicidade no travesseiro ao lado. Já não ia mais ao teatro, não frequentava a Pinacoteca, não fotografava mais o Parque da Luz. Evitei os lugares que me faziam lembrar seu perfume, nossos momentos, nossas vidas juntas. É difícil continuar quando a razão do teu viver aparece por um breve momento e se vai, deixando uma marca tão profunda. Às vezes penso que melhor seria se eu nunca a tivesse conhecido.
Na agência, um telegrama. Nova proposta de trabalho. Irrecusável. Cobrir um evento cultural na Estação da Luz. Apesar de minha reluta interna, aceitei a proposta. Equipe reunida. Evento iniciado. Naquele cenário foi impossível não recordar a primeira troca de olhares, o primeiro toque. Enquanto montava o equipamento, ouço uma velha conhecida voz:
- Que bom que você aceitou esse trabalho. Ouvi dizer que há tempos você evita essa área. Mas eu queria muito trabalhar com você!
- Marina?
- Eu insisti, queria apenas você para esse trabalho!
Marina era uma colega da época da faculdade. Uma antiga paixão. Nosso relacionamento terminou de forma bruta. Pouco antes da formatura, graças aos ciúmes exagerados de ambas as partes. Nunca mais nos vimos, tampouco nos falamos. A jornalista dos meus sonhos de juventude estava ainda mais bela que antes. Seus cabelos avermelhados, seu sorriso de malícia. Um pouco de alegria tomou conta de mim, coisa que não acontecia desde que meu grande amor me deixou.
O que seria um sacrifício tornou-se o mais agradável trabalho. A doce Marina me fez esquecer as preocupações que me afligiam nos últimos dias. Relembrou cenas engraçadas da época da faculdade, de pessoas inesquecíveis. Confesso que seu retorno me fez bem. Mas eu estava ciente que nada mais poderia haver entre nós. Era apenas amizade. Uma linda amizade que pensávamos ter acabado ainda na faculdade. A vida tem dessas coisas irônicas, de aproximar dois corações amargurados em momentos nada prudentes, para fazê-los salvarem-se juntos destas decepções. Após 6 anos de casamento, ela estava tentando encarar essa nova vida de solteira.
Era madrugada, quando fui acordada pelo toque do telefone. Marina. Aflita, insistia para que eu a encontrasse naquele mesmo horário. Preocupada, corri à sua procura. Ela estava num bar nada agradável, daqueles botecos de esquina, envolta a vários sujeitos mal encarados, completamente embriagada. Chega a ser irônica a forma como algumas pessoas se autodestroem quando um relacionamento acaba. Levei-a para minha casa, dei-lhe banho e a fiz dormir. Passei o restante da noite inteira observando seu sono. Como ela era bela! A minha vontade era de acordá-la com um beijo e tê-la novamente para mim. Controlei-me o máximo que pude e saí de casa, para ter a certeza de que não faria tal besteira. Não havia dado certo uma vez, não daria certo agora também.
Passei o dia inteiro na agência, sem conseguir produzir nada. Eu queria voltar para casa, mas tinha medo de encontrá-la ainda na cama e não controlar minha vontade de agarrá-la. Por outro lado havia o medo de não encontrá-la e saber que, mais uma vez, ela preferiu sair da minha vida. Ao fim do dia retornei e a encontrei na cozinha, com minha camisola e um sorriso inocente.
- Desculpe-me por ontem à noite. Não sei o que deu em mim.
- Não precisa se desculpar. O importante é que você está bem, agora. – Ela se aproximou o suficiente para eu sentir sua respiração se misturar com a minha, a ponta de seu nariz encostando-se ao meu, suas mãos em minhas mãos.
- Graças a você. Obrigada!
E me beijou. Não pude me defender, pois meu íntimo pedia por aquele beijo. Era exatamente como eu me lembrava. Aquele mesmo sorriso misturado ao beijo, a mesma doçura ao brincar com a língua. Me rendi. Beijei-a com ternura, com paixão, com desejo e me senti flutuar. Era tão boa sensação.
Ao acordar e vê-la ao meu lado, na cama, parei por alguns segundos para ter a certeza de que a noite realmente havia acontecido. Foi tudo tão maravilhoso. Fiz o melhor café da manhã e levei na cama. Ela disse que nunca havia me esquecido, que sabia que nossa história não havia terminado e um dia teria novamente meu amor. Era tudo o que eu precisava ouvir. Reviver uma antiga paixão é das sensações mais prazerosas que um ser humano pode ter.
Tivemos quatro anos de felicidade. A empresa completava quinze de fundação. Ela me ajudou com os preparativos para a comemoração. Cerca de 2.000 convidados, com direito a discursos e aumento de salários. Tudo corria tão bem, eu estava completa, satisfeita com a profissão e, principalmente, em minha vida pessoal. Entre drinks e brindes, ela sentiu uma forte dor no peito. Disse que estava tudo bem, mas eu não confiei. No dia seguinte insisti para que fôssemos ao médico. Em poucas semanas descobriu-se um tumor. Passamos meses lutando contra a doença. Até que, no outono daquele mesmo ano, ela me deixou.
Tentei cumprir a promessa: continuar trabalhando, caminhando, continuar vivendo por ela. Mas era cada vez mais difícil. Um ano depois deixei a empresa nas mãos dos meus sócios e decidi viajar o mundo, conhecer os lugares que ela sempre quis conhecer. Pensei em parar e voltar, esperar pela minha morte sentada no sofá. Mas eu a decepcionaria se fizesse isso. Maldita mania de sempre sofrer por amor.
Londres era a última cidade da lista. Meu inconsciente pedia para procurar pela Laurie. Eu relutava, mas de nada adiantou. Amei perdidamente a Marina, mas não podia deixar de lado o fato que Laurie me fez feliz também. Foi um amor que valeu a pena, cada minuto. Se for verdade que possa haver dois grandes amores em um mesmo coração, estes foram os meus. Minha paixão londrina ainda estava viva dentro de mim. Bastou um simples telegrama. Encontrei-a num café. Estava frio e ela com charmosa echarpe branca.
- Achei que nunca mais a veria!
- Laurie! Está ainda mais bela que antes!
- Bondade a sua. O tempo não me foi favorável.
- Está enganada! O tempo lhe fez muitíssimo bem e ainda soube preservar este seu olhar inocente e...
- E...?
- Tentador! - Ela sorriu timidamente, olhando para baixo, como sempre fazia quando estava envergonhada. – Soube que tens feito a curadoria de alguns artistas brasileiros.
- Sim, me especializei em obras latinas. A América do Sul, em especial o Brasil, tem produzido obras de artes de grande valor. Às vezes até me sinto uma brasileira representando um produto de minha nação, tamanho o orgulho!
A conversa foi pouca, boba, apenas um ‘café da tarde’. Apesar de nutrir por ela um forte sentimento, ainda estava sofrendo pela perda da Mari. Na certa fui uma péssima companhia, um olhar vazio, um sorriso sem graça, uma perda de tempo para ela. Na manhã seguinte voltei ao Brasil. Aquela viagem havia-me feito muito bem. Voltei a trabalhar com mais disposição, não sentia mais o amargo de minha casa vazia tanto quanto antes. Os pais da Marina me visitavam com frequência, sempre gentis e atenciosos, me tratavam como filha. Era algo que eu havia conquistado e, por mais que me doesse ver nos olhos desses a tristeza da perda de sua única filha, gostava de ter-lhes por perto. Eu havia perdido minha mãe muito cedo e não tinha uma boa comunicação com meu pai. Eles eram a única família que eu tinha. E eu os amava como se fossem meus pais. Até que um motoqueiro embriagado tirou de mim esse pedaço de felicidade. Sofri duas grandes perdas, no mesmo dia.
Parecia que o mundo conspirava contra a minha felicidade. Vendi o apartamento e comprei uma casa menor, num bairro mais seguro, onde eu pude ter meu tão sonhado muro baixo e vizinhos simpáticos. Adquiri um lindo filhote de Labrador e um recém-nascido Pastor Alemão. Thor e Nero. Dois meses foram suficientes para eu me arrepender da aquisição, destruíram toda a casa. Mas eu já havia me apegado a eles. Certa manhã, lutando com Thor para pegar o jornal, ouço uma voz conhecida, bem no meu portão:
- Lindos cães!
- Laurie?
- Eu disse que voltaria! Quer dizer, se você ainda me aceitar!
- Mas... Como... Eu não entendo!
- Eu errei ao ir embora e lhe deixar. Eu só precisava de um tempo para terminar meus estudos. Mas eu deveria ter-lhe explicado direito. Quando pude, finalmente voltar, você já estava com a Marina. Depois, quando você me ligou de Londres, achei que poderíamos ser o que éramos antes. Mas percebi que você ainda não estava preparada. Eu te amo, Marcela. E mesmo que você não esteja preparada, eu quero ficar ao seu lado.
- Laurie, nunca deixei de te amar. Depois que você partiu eu sofri muito, mas reencontrei a Marina e meu coração viu novamente a luz. Eu a amei, mas ainda tinha você em meu coração. Não posso dizer que amei mais a ela, ou amei mais você, mas... nossa história já acabou!
- Marcela, não podemos acabar desse jeito. Eu te amo e sei que você ainda me ama. Não impeça a si mesma de ser feliz.
E me abraçou com tanta força, como que não quisesse jamais me soltar. Não posso negar que aquele abraço quase me fez voltar atrás com minha palavra, mas eu tinha que colocar um ponto final. Levei-a ao aeroporto e aqui estou, olhando para a porta de embarque, com uma enorme tristeza dentro de mim. Não deveria tê-la deixado partir pela primeira vez. Um cristal quebrado jamais volta a ser igual e dizer adeus pela segunda vez foi a melhor coisa que eu poderia fazer... por mim, por ela.