Foto Google           Um senhor de barba branca estava mergulhado em seu jornal do dia. A moça de cabelos cacheados folheava a revista de mo...

Don Juan

Por | 22:06

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          Um senhor de barba branca estava mergulhado em seu jornal do dia. A moça de cabelos cacheados folheava a revista de moda. Pela plataforma brincava um menino de 6 anos. Sua mãe desistira de tentar segurá-lo. Um jovem trajando um terno fino estava pendurado em seu aparelho celular. Um rapaz de mochila nas costas mascava chiclete e não tirava os olhos da moça de cabelos cacheados. Tudo me soava tão familiar e tão estranho, ao mesmo tempo. Tanto desejei voltar. A velha estação de trem que levava para a cidade onde nasci ainda era a mesma. Tantos rostos desconhecidos, com propósitos diferentes, mas o mesmo destino. Eu ficava me perguntando o que uma moça moderna como aquela de cabelos cacheados, faria numa cidade do interior. O rapaz com o chiclete parecia um estudante explorando a região. A mãe e o menino poderiam estar indo visitar a casa dos avós. O rapaz de terno, na certa um empreendedor procurando expandir seus negócios no campo. E o senhor? Parecia-me um cidadão nativo, mas o que fazia, então, na cidade grande? Talvez fora visitar a família de seu filho. Era sempre assim. Os filhos saíam de suas casas para tentar vida melhor na cidade grande. Sou exemplo nato. Sonhava em algo maior que uma cidadezinha camponesa aonde todos conhecem a todos, em que o prefeito vai almoçar na casa do ‘compadre’. Confesso que aquela vida me fez muita falta, na capital.
          Há muito eu não voltava para aquela cidade. Desde a morte de meus pais. Eu estava em meu segundo ano da faculdade, quando meu pai, voltando de uma festa um pouco embriagado, entrou na contramão e colidiu com uma carreta. Minha mãe faleceu na hora. Ele ainda lutou, naquela cama do hospital, por mais três dias. Fiquei ao seu lado, e o vi morrer. No velório revi todos os parentes e amigos, pela última vez. Meus tios estavam mais interessados nas propriedades de meu pai. Tomaz, meu melhor amigo desde a infância, apareceu apenas para se gabar de sua vitória na política. Os vizinhos só buscavam saber o que eu fazia na capital. Laura foi quem realmente se preocupou comigo. Era a única que poderia me desprezar, já que abandonei nosso amor pelo meu sonho de estudar na cidade grande. Ela estava tão linda naquele vestido preto, realçando sua pele branca, seus olhos azuis e seus lábios vermelhos. Seu olhar era de ternura. Me abraçou e então percebi que eu só tinha a ela. Meu primeiro e único amor.
          Quando todos finalmente foram embora, Laura permaneceu ao meu lado. Queria se certificar de que eu estaria bem. Compartilhava comigo a tristeza. Eu a vi pegar no sono e comecei a pensar no futuro. No nosso futuro. Quando toda a tempestade passar, eu a pediria em casamento e construiria, ao lado dela, uma família, na capital. Ela sempre sonhou em ter nossos filhos. Eu já possuía emprego fixo, um apartamento confortável, uma vida por lá. Só precisava dela ao meu lado. Mas todos os meus sonhos de um futuro ao lado dela foram embora com a lua. Ao amanhecer, Laura me contou que estava noiva de outro rapaz. Eu não sabia distinguir se aquele olhar era de pena, por eu ser um cara jogado no mundo sem família e sem amigos, ou era arrependimento por não ter me esperado. Não posso julgá-la. Eu havia ido embora, deixando claro que não queria, jamais, voltar.
          Mas eu estava voltando. Assim como aquela mãe com seu filho, ou aquele senhor de barba branca, eu estava voltando para meu lar. Senti uma pontada forte no peito, ao ouvir o apito do trem. Ele estava chegando para levar-me de volta ao lugar de onde eu não deveria ter partido. Esperei que todos entrassem no vagão. Com passos lentos, fui o último passageiro. Sentei-me ao lado do senhor de barba branca. Ele guardou sem jornal na velha bolsa de couro marrom, com a fechadura enferrujada em formato de cruz. Pelas pontas dos dedos e dos cigarros, e também pelas constantes tosses, logo se percebe que era mais uma vítima do tabaco. Olhou-me com ar de sabedoria, e perguntou-me se eu havia me arrependido de ter ido embora.
- Um pouco – Respondi envergonhado.
- Eu também me arrependi. Faz muitos anos. Mas tive meu tempo de consertar tudo. Perdi muita coisa, inclusive o amor da minha bela Rosa, mas reencontrei a paz, pude recuperar o tempo perdido com meus pais, pude conhecê-los melhor. Não troco aquele lugar por nada. Não entendo porque vocês, jovens, ainda insistem em querer mudar as coisas. Deveriam aprender com os mais velhos, como eu, que a partida nem sempre é a melhor coisa. Mas vocês são teimosos, querem provar que nós estamos errados.
          Ele estava certo. Mas já era tarde para eu me arrepender. Meus pais já não me esperavam em casa e a ‘minha bela Rosa’ estava casada com outro. A moça de cabelos cacheados, sentada bem à nossa frente, parecia ter deixado de lado sua revista para refletir sobre o que o velho me dizia. O rapaz de terno, sentado ao seu lado, me encarava com curiosidade. Seguiram-se alguns minutos de silêncio, até que o senhor continuou:
- Você não é o filho de Rubens Castro?
- Sim, eu mesmo! Conheceu meu pai?
- E quem não conheceu o velho Rubens! Fomos amigos dos tempos do colégio e também colegas de faculdade em São Paulo.
- Em São Paulo?
- Sim. Eu e seu pai fomos morar um tempo na capital. Era o nosso plano desde nossos catorze anos. Apesar de ter feito sucesso com os brotos, tudo o que ele desejava era terminar o curso e voltar para se casar com a Lucinha. Eu iria ser seu padrinho de casamento, mas a vida lá me pegou de jeito. Depois, quando voltei, seu pai já era um homem de posses, influente. Me senti envergonhado por não ter conseguido nada na vida e nem o procurei. Acho que ele nunca soube que eu voltei, pois se soubesse, ele teria ido me procurar, mesmo sendo eu um cara qualquer. Ele era um grande homem!
          Ele era sim. Mesmo sendo contra minha partida, me apoiou e me deu uma grande quantia em dinheiro para me manter na cidade. Ele também convenceu minha mãe a deixar-me ir, pois sabia que eu aprenderia a lição e um dia voltaria para casa. Mas infelizmente o destino adiou meu retorno e o levou cedo demais.
          Eu já avistava os campos da pequena cidade, pela janela do trem. Tudo estava igual como era antes. As irrigações, os pastos, os agricultores, as grandes casas de fazenda, os rios e ribeirinhos, os pássaros e o sol atrás da colina. Cenário maravilhoso. Qualquer poeta ou pintor adoraria retratar tal imagem. O senhor ao meu lado, percebendo o brilho nos meus olhos, deixou-me a sós com meu encantamento. Mais alguns poucos quilômetros me separavam da propriedade de meu pai.O trem deu seu último apito, estava chegando à estação final. Após o desembarque, o rapaz de terno me perguntou:
- Você é Pedro Castro?
- Sim. Você é...?
- Lucas Sabin. Acredito que você não vá se lembrar...
- Claro que me lembro! Fizemos o colegial juntos.
- Sim, faz muito tempo! 
- Que tem feito da vida? Todo elegante!
- Sou economista especializado em zonas rurais. E você? Ainda inclinado às artes?
- Sim. Sou escritor, músico e ator.
- Assisti a um de seus espetáculos há dois anos. Brilhante atuação!
- Obrigado!
- Estou surpreso por te ver aqui! Ouvi dizer que você jurou jamais voltar para esta cidade depois...
- Depois da morte de meus pais, evitei vir aqui, por que sabia que eu ainda não estava preparado para conviver com tudo isso. Ainda mais quando soube do casamento da Laurinha.
- Está indo para casa?
- Sim.
- Aceite minha carona, é caminho para mim!
- Se é caminho, aceito sim, obrigado!
          Lucas estava atencioso, modesto e seguro, bem diferente daquele garoto franzino que conheci na infância. Nunca me imaginei trocando mais de duas palavras com o nerdzinho da turma. Ele me contou das mudanças na cidade, da nova Igreja construída em frente à praça, da reforma do coreto, do novo comércio da região, novos grandes proprietários de terras, a economia da cidade, a prisão do meu antigo amigo Tomaz, alguns antigos colegas nossos...
- Fiquei fora por oito anos, mas não imaginei que as coisas haviam mudado tanto assim!
- Pois é! A maioria de nós está casada e com pelo menos dois filhos. Eles me fazem lembrar muito aquela nossa época. Nunca fui de me enturmar com vocês, mas me lembro bem das puladas de cerca, das mangas roubadas no quintal do Seu Joaquim, os banhos de cachoeira... Esses garotos mantêm a tradição!
- Laura também teve filhos?
- Sim. O pequeno Juan. Faz jus ao nome, é o galãzinho dessa nova geração! Faz lembrar bastante o pai, quando moço.
- E quem é o pai?
- Chegamos. Deixe-me ajudar com suas malas!
          A velha casa estava igualzinha, a mesma pintura, com apenas alguns retoques, o mesmo peitoril, a escada com três degraus, o assoalho marrom, a velha cadeira de balanço de meu pai e as plantas por toda a varanda. João Pires e Dona Glória, os caseiros da propriedade desde minha infância, vieram me recepcionar. Eles possuíam uma procuração da propriedade e a mantiveram durante minha ausência. Periodicamente, enviava-lhe recursos financeiros e outros agrados que me eram possíveis. Estavam apenas um pouco mais velhos do que eu recordava, mas mantinham aquele ar de jovialidade, aqueles sorrisos tão familiares e olhares carismáticos. Sempre me trataram como um filho. Como eu pude esquecer esse carisma por tanto tempo?
          Lucas foi embora e pude contemplar melhor a propriedade. A sala de estar ainda com aquelas poltronas antigas, sofá desgastado, uma mesa de centro de vidro. Os móveis eram de alto bom gosto e feitos da melhor madeira do mercado. Ao lado esquerdo da sala, o pequeno bar, com importadas garrafas de vinho e outros drinks finos. No corredor aquele tictac de madeira, antigo, ainda funcionando. Meu quarto ainda era o mesmo. A parede azul celeste, os livros sobre a escrivaninha, os scripts de algumas peças teatrais, o violão no futon, as fotografias em preto e branco nos porta-retratos e os cartazes de alguns ídolos espalhadas por toda a parede. Um típico quarto de adolescente, com uma cama de casal. Os quartos de hóspedes ainda cheiravam a novos. Acho que nunca foram usados. Nem quando meus tios apareciam em casa. Eles sempre saíam antes do anoitecer, para felicidade de meu pai. No fim do corredor, a suíte principal. Hesitei bastante antes de abrir as portas. Tudo estava perfeitamente igual. A cama de casal, feita sob medida, no meio do quarto, a janela com visão para o jardim de mamãe, os livros de meu pai, sua velha caixa de óculos, o guarda-roupa organizado, as fotografias guardadas no pequeno baú ao pé da cama, os lençóis brancos que mamãe tanto amava e o paletó de meu pai, pendurado próximo à sua cabeceira. Eu poderia até sentir o perfume dos dois. Só havia uma coisa diferente, naquele quarto, além da ausência de seus donos. No criado-mudo de mamãe havia uma pequena caixinha preta, de veludo, com uma placa de ouro, escrito “Castro”. Ao abrir, encontrei as duas alianças de casamento e o colar que mamãe usara desde meu nascimento, com o pingente de menininho, que meu pai lhe dera. João entrou no quarto naquele momento, e me disse que preferiu manter tudo como estava, porque sabia que eu iria gostar de encontrar dessa forma. Ele tinha razão. Quase pude sentir a presença de meus pais, ali conosco. Eles estavam felizes pelo meu retorno, tenho certeza!
- Como está o pasto?
- Um pouco mais rentável que a última vez que lhe escrevi. Sete cabeças de gado a mais. Temos também mais três cavalos e o galinheiro continua com a mesma média.
- Algum cavalo brabo que saiba recepcionar um recém chegado da cidade grande?
- Sim. Você vai gostar do Ventania. Cria de Napoleão.
- Gostei do nome! E ele é tão valente quanto o pai?
- Até um pouco mais. Quer dar uma volta?
- Com certeza!
          Incrível a semelhança entre meu falecido Napoleão e o novato Ventania. Galopei por toda a fazenda e depois pelos pastos vizinhos. Reconheci alguns rostos no caminho. Outros me eram novos. A cidade estava realmente mudada. A igreja possuía uma arquitetura invejável. Beatas conversavam na entrada, cochichando sobre a minha volta. A pracinha que tanto brinquei na infância estava ainda mais bonita, os garotos corriam e se divertiam. As meninas apreciavam as flores e alguns jovens casais apaixonados dividiam os bancos. Me lembrei da minha Laura. Voltei para a estrada e passei em frente às propriedades de sua família. A fachada ainda era a mesma. Só a casa havia sofrido uma reforma que a descaracterizou por completo. Na cadeira de balanço, lendo um livro de Ítalo Calvino, um rosto conhecido, envelhecido. Sua expressão era de cansaço e suas rugas tornaram marcas de uma vida calejada. O tempo não parece ter-lhe feito muito bem.
- Coronel Fontes?
- Pedrinho? É você, meu filho?
- Eu mesmo, Coronel! Como tem passado?
- Bem, muito bem, meu rapaz! Venha, entre, dá cá um abraço neste velho!
- Como senti falta de extrema gentileza e hospitalidade!
- Fico feliz em te ver. Veio à passeio?
- Ainda não tenho certeza.
- Seja bem-vindo de volta, meu filho! Você fez muita falta a este lugar!
- E este lugar também me fez muita falta! Não faz ideia o quanto!
- Soube que fez nome e fortuna nas cidades grandes. Sempre leio algo sobre você nos jornais.
- Sim. Sou um pouco conhecido pelo meu trabalho.
- Laurinha ficará tão feliz em te ver. – E virando-se ao interior do casarão, gritou – Laura... Laurinha!
- Laura está aqui?  - Perguntei surpreso.
- Sim. E continua linda, prendada e atenciosa como sempre. Meu orgulho! Entre, ela deve estar no quarto, vou chamá-la!
- Não, tudo bem, eu espero aqui mesmo!
          Eu não podia acreditar! Será que o marido e o filho também estavam na casa? Eu estava ansioso. Queria vê-la, mas tinha receio do que poderia acontecer. Um garoto galopava na estrada. Podia-se ver seu talento com as rédeas de longe. Brincava com o animal como se estivesse brincando com um amigo. Entrou na fazenda e correu em direção a casa. Será ele o fruto dela, o pequeno Juan? Lucas tinha razão, ele era um verdadeiro gentleman. Aproximou-se de mim e, de modo bem cavalheiresco, perguntou-me em que poderia me ajudar.
- Imagino que você seja o Juan!
- E você é Pedro Castro!
- Como sabe sobre mim?
- Todos falam de você: o tio Tomaz, o tio Lucas, tia Bárbara, vovô, a dona Francisca, dona Glória... assisti algumas apresentações suas, em São Paulo. Gostei quando você encenou Shakespeare, mas prefiro as comédias que você fez. E tenho todos os seus livros. Você poderia autografá-los, se quiser!
- Fico lisonjeado! E autografo com prazer!
- Obrigado. Vou tomar um banho antes que mamãe me mate e já te trago os livros.
- Tudo bem, vai lá garoto! Ficarei esperando!
          As palavras de Lucas não saiam da minha mente. Faz lembrar bastante o pai, quando moço. Durante todos esses anos imaginei que talvez Laura tivesse se casado com Tomaz, mas aquele garoto estava longe de parecer o encrenqueiro do meu antigo melhor amigo. Tomaz era arteiro e mal educado. Seu cabelo era castanho escuro, tinha sobrancelhas grossas e feições mais cruas. Juan era mais loiro, branquelo, feições e sobrancelhas finas, bem educado e gentil.
- Pedro?
          Olhei para os olhos de Laura, ternos, meigos, brilhantes e azuis. Ainda era a minha bela Laurinha. Meu primeiro e único amor. Tentei dizer alguma coisa, mas gaguejei e então me calei.
- Ora, ora! O escritor não sabe o que falar?
- Está tão linda!
- E você não mudou em nada!
- Eu falo sério, Laura!
- Eu também! Continua sendo o charmoso Pedro, galanteador e lindo... Meu Don Juan!
- Ele é meu filho, não é? - Ela me olhou assustada. Chegou a abrir a boca para falar, mas logo se arrependeu e continuou em silêncio. Foi o próprio silêncio que confirmou. Juan era filho meu. Fruto de nosso amor. Quase poderia explodir de felicidade. – Foi aquela noite, após o funeral. Eu achei que você ficaria comigo para sempre, mas... Oh, Laurinha, apenas diz que sim. Eu já sei a verdade, mas preciso ouvir de você!
- Sim, é verdade! – Ela abaixou os olhos, e começou a chorar. – Eu pensei em te procurar e contar tudo, escrevi um telegrama, mas nunca tive coragem de lhe enviar. Eu fiquei com medo.
- Com medo de quê, Laurinha? – Segurei seu rosto com as duas mãos e puxei-o a mim, falando bem baixinho – Eu estou tão feliz! Perdi toda a sua infância, mas agora poderei acompanhá-lo crescer!
- Acompanhá-lo? – Ela se afastou de mim, rapidamente – Acompanhá-lo como? Juan não vai para São Paulo!
- Não, não precisa ir, se ele não quiser. Eu ficarei aqui!
- E seu trabalho?
- Larguei a maioria das minhas peças. Participarei de apenas algumas poucas temporadas. Dedicarei meu tempo à produção de mais livros, e isso posso fazer aqui mesmo! Esse já era meu plano antes mesmo... antes mesmo de saber sobre o... ele sabe sobre mim?
- Sim. Preferi contar a verdade desde o início.
- E seu marido?
- Ele também sabia de tudo, desde o início!
- Sabia?
- Tomaz e eu estamos divorciados há seis anos!  E você, não se casou?
- Eu tentei, mas não deu muito certo. Nunca tirei você do meu coração. Laura, eu sei que estou dez anos atrasado, mas... case-se comigo?



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