A garota do ônibus
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A primeira vez que a vi, eu estava em pé no corredor do ônibus, falando ao celular e ela estava bem atrás de mim, sentada em um dos bancos. Eu não havia notado sua presença, até que, involuntariamente, olhei para trás e a surpreendi olhando para mim. Achei beleza em seus olhos, mas imaginei que talvez ela estivesse apenas lendo as inscrições da minha camisa da faculdade. Ignorei e continuei atento à minha conversa. Desliguei e uma curiosidade tamanha me fez olhar mais uma vez para trás e lá estava ela, novamente, me observando. Desta vez ela tentou disfarçar e eu fingi nem notar sua curiosidade sobre mim. Em dados momentos ela ainda me observava. E aquilo me levou a um sentimento estranho, uma sensação diferente. Aqueles belos olhos me chamaram a atenção. Fui tomado de súbito alívio ao ver que meus olhos se encontraram com os dela. Houve uma ligeira comunicação entre nós. Não sei exatamente o que conversamos, mas sei que foi intenso.
Chegamos ao terminal rodoviário e desci. Ela também desceu. Não sabia explicar exatamente o porquê, mas a minha vontade era de entrar no mesmo ônibus que ela. Fui covarde o suficiente para me dirigir à outra plataforma e esperar o ônibus que me levaria para casa. Eu podia ir a pé, já que o terminal ficava a 15 minutos caminhando, mas estava mais distraído do que de costume. Poderia atravessar o farol e acabar atropelado. Resolvi não me arriscar.
Durante os cincos minutos no ônibus, fiquei pensando naquele olhar. Desci e caminhei até a porta de casa. Parei. Não sabia o que fazia ali. Foi quando minha vizinha tentou se meter mais uma vez em minha vida me perguntando o que eu tinha. “Nada”, respondi, e me lembrei de que precisava pegar minha chave para entrar. Fui direto para o banho. Queria me livrar da sensação de perda que eu tive quando a vi subindo naquele ônibus e nada fiz. A água fria podia tirar de mim a poluição da cidade grande, mas meus pensamentos estavam intactos, presos a ela.
Eu precisava terminar um trabalho da faculdade. Uma análise crítica que exigia toda a minha atenção. Enrolei. Entrei no site de relacionamentos e visualizei perfis desconhecidos. Acho que eu estava procurando por um rosto em meio a tantos outros, talvez o olhar, sim o olhar que tanto me chamara atenção. Por um lapso de segundo me lembrei de que ainda havia um trabalho a terminar. Olhei para a janela e me surpreendi com o luar banhado à sacada. Fechei todos os programas, exceto o editor de textos. Esbocei um sorriso ao ler o que eu havia escrito. Meu trabalho se baseava num livro sobre interface gráfica e eu estava justamente falando sobre os progressos tecnológicos e como o computador pessoal tornou-se uma distração para seus usuários. Era segunda-feira, dezoito de maio de 2009. Terminei meu trabalho no inicio da madrugada.
Enquanto o sono fugia do meu quarto, minha cabeça enchia de enigmas. Quem era ela? O que fazia? Onde morava? Quantos anos tinha? Porque despertou em mim tanto interesse? Porque era tão linda? Porque o interesse em me observar? O que queriam me dizer seus lindos olhos castanhos? E todas essas perguntas também ecoavam em minha mente no caminho da faculdade, na terça-feira de manhã. Procurei aquele olhar enigmático dentro de tantos rostos desconhecidos. Será que ela pegava aquele mesmo ônibus todas as manhãs naquele mesmo horário? Mas ela não estava lá. Ao fim da aula corri para o ponto de ônibus, pois tinha esperança de encontrar os lindos e misteriosos olhos castanhos do dia anterior. Peguei o ônibus e imediatamente corri meus olhos em busca daqueles. Nada. Entristeci-me, mas logo lembrei de que eu não havia reparado em que ponto ela subira, se antes ou depois de mim. Em cada ponto que passava eu ficava atento se não era lá que ela estava. Observei cada par de olhos que entrava. Nenhum tão belo quanto o dela. Esperança vã.
Na quarta-feira, após a aula, corri novamente ao ponto de ônibus, mas enquanto esperava me lembrei de que talvez eu tivesse me atrasado na segunda e pego outro ônibus. Decidi deixar o primeiro passar e subir no segundo. Quinze minutos foi o tempo que esperei. Imediatamente subi e nada de encontrá-la. Novamente observei cada ponto e cada pessoa que subia. Cada vez que eu olhava para uma moça me lembrava dela, mas nenhuma possuía sua beleza. Ela tinha o cabelo um pouco abaixo dos ombros, castanhos, como os olhos, nariz fino e delicado, sobrancelhas marcando bem e aperfeiçoando os traços de seu rosto, seus lábios perfeitos e... ah, eu deveria parar de pensar nela. Preocupei-me severamente com o modo que eu estava agindo. Entrei em casa e decidi esquecê-la.
Quinta-feira. Aula de Filosofia. Saí da sala viajando em pensamentos, contemplando as lendas gregas. Peguei o ônibus distraído. Três pontos depois, um par de olhos, já velhos conhecidos dos meus sonhos, sobe. Era ela. Com mais três amigas. Ela me olhava com um sorriso de canto de boca, um olhar convidativo. Gostaria de contar, aqui, que logo tivemos nosso primeiro contato, marcamos um encontro, fomos ao cinema, um passeio no parque, um beijo... Infelizmente não foi bem assim que aconteceu.
Passamos longos meses ainda nesse encontro diário, no transporte público, mas sem trocar uma palavra sequer. Apenas olhares. Sabia seu nome, Aline, de tanto ouvir suas amigas falarem. Aliás, sabia os nomes delas, também: Suelen, Ana Beatriz e Cláudia. Trabalhavam juntas em um centro de atendimento aos deficientes auditivos. Amigas indiscretas, que lançavam comentários irônicos sobre nossas trocas de olhares, incentivando uma tomada de atitude. E justamente por causa delas, eu ficava sem graça e nada fazia.
Entrei em férias na faculdade e viajei por quase dois meses. Quando voltei, não mais a vi. Nem ela, nem as amigas dela. Assim como na primeira semana que a ‘conheci’, procurei pegar o ônibus em horários diferentes, mas não a encontrava, até que, no começo de outubro, ela reapareceu. Sozinha. Sem as amigas indiscretas. E sentou-se bem ao meu lado, no ônibus, pela primeira vez na vida. Confuso, trêmulo, deixei meu celular cair no chão. Abaixamo-nos juntos e batemos com a cabeça um no outro. Rimos. Ela pegou meu celular. Eu agradeci. “Há tempos não te vejo. E pensei que nem a veria mais”, comentei, por impulso. “É também achei que não veria mais você”, respondeu ela, não escondendo o sorriso de alívio. Duas das amigas delas trocaram de horário, na empresa. As outras duas foram despedidas.
Conversamos todo o restante do caminho. E conversávamos todos os dias por mais de um mês. Ela prestou o ENEM para cursar Hotelaria. Fez 18 anos no dia 4 de novembro de 2009. Fiz todos os passageiros cantarem parabéns à ela e a presenteei com uma caixa de bombons. Ela me entregou um papel dobrado com o telefone e o MSN anotado. Guardei dentro da bolsa e nos despedimos. Eu iria viajar por uma semana. Procurei o papel por todo o canto. Dentro da mochila, no bolso da calça, entre as páginas dos livros, no caderno, mas não encontrei. Eu iria pedir novamente, ao retornar.
Voltei à SP e peguei o mesmo ônibus no mesmo horário. Ela havia sumido novamente. Semanas, dias, meses, anos... quatro anos sem saber o que aconteceu com a bela Aline. Segui minha vida, comecei a trabalhar, terminei a faculdade, tive duas namoradas e várias outras paixões, mas nunca criei coragem de procurar o centro de assistência que ela trabalhava. E, mesmo depois de tanto tempo, ainda não me esqueço daqueles belos olhos castanhos. Um dia irei reencontrá-los.