O garoto da janela
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Já faz algum tempo, mas lembro bem aquela época. Eu tinha 14 anos. Minha amiga Priscila, 13. Morávamos no mesmo bairro e estudávamos na mesma escola, em bairro vizinho. Saíamos do colégio por volta das 12h. Sempre fazíamos o mesmo caminho. Conhecíamos de cor cada casa, cada árvore e cada pedregulho da calçada por onde andávamos. Inclusive o sobrado da janela redonda, o sobrado dos nossos sonhos. A casa nos chamou a atenção não pelo charme, com as portas trabalhadas em madeira maciça, ou pela Acácia que enfeitava o jardim da frente, e nem mesmo pelo Porsche preto ou o Jeep Willys verde na garagem, mas por um dos quartos atrás da grande varanda que dava de frente para a rua.
O quarto era pequeno e bagunçado, mas se tornou nosso lugar preferido, mesmo nunca tendo entrado lá. Conhecíamos apenas dessa forma: pela vista da rua. Em um dos lados da parede, um quadro com a foto dos meus ídolos, The Beatles, em preto e branco. Ao lado, uma prateleira com os cinco primeiros livros de Harry Potter, todos que haviam sido publicados até então. Abaixo da prateleira de livros, um compensado com os melhores CDs das melhores bandas, as nossas preferidas, na época: The Beatles, Queen, Pink Floyd, Metallica, Rollings Stones, Poison, Nirvana, Guns’n Roses, 4 Non Blondes, Radiohead, Red Hot Chili Peppers etc. Do outro lado, perto da porta que dava para a varanda, uma bicicleta com frases de algumas canções dos Beatles. Ao lado da bicicleta, pendurados na parede, um skate e um par de patins, também com adesivos de frases. O guarda roupa era adesivado com os logos das bandas, a maioria de rock. Na porta, uma foto gigante de Alex Turner, vocalista e guitarrista da banda Arctic Monkeys. Pendurada na porta, uma guitarra bem parecida com a que Alex usava na foto. O lustre era em forma de caveira e era a coisa mais sensacional que eu já tinha visto até então.
Priscila e eu admirávamos aquele quarto. Estávamos numa fase da adolescência muito peculiar: a descoberta da identidade. Tínhamos paixões por caras com skate no pé, cabelo bagunçado, roupas pretas e acessórios, de preferência membro de alguma banda. Ah, sim... e sempre pelos mais velhos, também. Éramos as típicas garotas que frequentavam a Galeria do Rock para conhecer os típicos caras que costumavam andar por lá, na época. Éramos estereótipos. Imaginávamos que o dono daquele quarto fosse justamente o dono do perfil dos nossos sonhos, mas nunca o havíamos visto. Sim! Nos apaixonamos por um garoto pelo seu quarto, sem nem ao menos conhecê-lo.
Passávamos quase todos os dias, por meses, naquela rua. Arquitetamos planos para chamar a atenção e fazê-lo ir até a varanda: simulamos um acidente de bicicleta. Fingi derrapar na calçada e bater no pneu de trás da bicicleta da minha amiga. Ela caiu, mas não se feriu. Eu caí e esfolei meu joelho. Foi uma confusão. Os vizinhos saíram à rua oferecendo ajuda. Os pais do garoto da janela apareceram também. Na varanda, a esperança: o cachorrinho, um poodle branco e irritante, surgiu latindo sem parar. Atrás dele... uma senhora de 65 anos, aparentemente. Ainda esperamos por mais alguns minutos e então, frustradas (e envergonhadas) fomos embora.
Não contentes, deixamos passar alguns dias. Nossas amigas do colégio já sabiam do ocorrido e estavam dispostas a ajudar. Iríamos simular uma briga de garotas bem na frente da janela do rapaz. Dessa vez, ele deveria aparecer. Sete amigas nos acompanharam. Priscila e eu fazíamos teatro, então não foi difícil a atuação. Por um longo momento, inclusive, achei que a briga havia se estendido para a realidade. Recebi um soco no estômago e caí ao chão. Ao me levantar, ainda um pouco zonza, empurrei-a e logo em seguida puxei-a pelo cabelo. A menina caiu e uma boa quantidade de seu cabelo loiro encaracolado ficou entre os meus dedos. Em todo o momento, as outras meninas escandalizavam, como fazem em toda briga. Gritavam, pediam para pararmos e tentavam nos separar. Novamente, a presença dos vizinhos curiosos, dos pais, da irmã mais nova do garoto, do cachorro irritante e da avó, mas nenhum sinal do menino. Após um longo sermão do dono da casa da frente, aos poucos fomos dissipando. Nos encontramos na rua de trás e os olhos azuis da Priscila estavam pegando fogo, assim como seu rosto, que costuma ser pálido. “Chega de planos! Nunca mais eu faço isso”, disse minha amiga.
Um mês depois e lá estávamos nós, mais uma vez. Minha irmã caçula nos acompanhava. Não simulamos acidente ou briga, mas chamamos a atenção do irritante cachorro. Ele parou de latir e parecia gostar da nossa companhia. Em pouco tempo, a luz do quarto acendeu. O coração disparou, os olhos começaram a brilhar. “É ele!”, falou Priscila. Infelizmente, era a avó.
Quase um ano depois de ver aquele quarto pela primeira vez, Priscila e eu chegamos a uma conclusão: o garoto da janela, na verdade, não existia. O quarto não poderia ser da filha, pois ela era patricinha demais, usava muito rosa e provavelmente não teria um lustre de caveira no quarto. Também não poderia ser dos pais. Era da velhinha, a simpática avó. E então criamos uma personagem para o nosso quarto dos sonhos. Ela era uma veterana do rock, provavelmente esteve presente em Woodstock, quem sabe até não foi amante de muitos guitarristas nacionais e internacionais? Sim, viajamos bastante com isso. Priscila uma vez falou que a imaginava no primeiro Rock in Rio, em 1985, levando o filho, já adolescente e com o cabelo estilo Slash. Ela diria ao filho: “isso é vida! Rock’n Roll na veia”, mas ele cresceu e ela ainda não havia saído daquele mundo. “Acho que vou ser como ela, quando crescer” – contei – “Imagina eu com quase 70 anos e não perdendo um único show de rock?”. Pois é... hoje tenho 22 e quase nem vou a um pub, imagine um show de rock...
Priscila foi embora para São Paulo. Eu passei a estudar no período da tarde, saindo do colégio no início da noite. Meu pai me buscava de carro. Raras eram as vezes que eu passava por aquela rua. Cresci e acabei esquecendo o sobrado e o quarto dos meus sonhos. Terminei o colégio, fui morar na capital e entrei na faculdade. Durante as férias do meu primeiro ano, decidi rever os locais da minha infância/adolescência. Passei por aquela rua. Era a mesma do meu primeiro beijo. Era a mesma do sobrado dos meus sonhos. E lá estava ele, na varanda: o cachorro irritante. Logo em seguida, surge a senhora, suposta dona do quarto maravilhoso. “Hey, resolveu aparecer, sumida?”, disse ela a mim. Depois de tantos micos que paguei, não havia como esquecer meu rosto. Iniciamos um bate papo e contei que morava em São Paulo, que estava cursando Comunicação e curtia as férias. Ela comentou que o neto havia acabado de se formar em Publicidade. Que legal, um colega comunicólogO QUÊ? NETO? Tive que controlar a língua, mas a cabeça perguntava: “Onde ele está? Como ele é? Qual o nome? É o dono do quarto perfeito? É tão perfeito quanto o quarto?”. Disfarcei minha curiosidade e comentei: “Poxa, já tem um neto com essa idade, é?” – CINISMO, DONA BRUNA?
Eu estava no portão, ainda numa conversa com a senhora, quando o Jeep verde apareceu. Era ele, o garoto dos meus sonhos, ali, bem diante de mim. Ainda mais lindo do que eu imaginava. Ainda mais simpático do que eu desejava e me cumprimentou, com um sorriso maravilhoso. Sua voz quase rouca me fez derreter ali mesmo. Ele entrou, ainda olhando para mim e, antes de fechar a porta, lançou uma piscadela. Em menos de um minuto ele estava na varanda, ao lado da avó. Sem ter mais assunto com a senhora, me despedi. “Passa aí qualquer hora, pra gente bater um papinho”, disse o garoto da janela. “Claro, até qualquer hora”, respondi, com o maior sorriso que eu poderia dar. Quase quatro anos depois, eu nunca voltei para aquele ‘papinho’, que ele mencionou, mas... quem sabe, qualquer hora dessa, eu não aproveite a oportunidade?