O namorado platônico
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Por um tempo, ele era apenas o garoto feliz do outro lado da sala de aula. Não era magro, mas também não era gordo. Não era alto e nem tão baixo. Cabelo curto e castanho escuro, escondido embaixo de um boné preto com o logotipo branco e vermelho. Sempre com camiseta preta, calça jeans malhada, relógio, mochila preta com listra vermelha, tênis Nike preto ou azul marinho. Usava aparelho nos dentes. Sorria de maneira sincera, mas com certa timidez no olhar. Não era o cara mais bonito da classe, mas me chamou a atenção.
Sempre gostei de desafios. Ouvir alguém dizer “você nunca vai conseguir isso” me forçava a testar meus limites e superar as expectativas. E era isso que minhas amigas diziam, quando eu contei que estava interessada no garoto tímido do outro lado da sala. “Você é do tipo que fala com todo mundo e ele é do tipo que não fala com ninguém. Nunca vai dar certo”, diziam. E eu concordava, em certo sentido, mas boa parte de mim queria conhecer melhor aquele cara, queria desvendar seus misteriosos olhos, queria sentir o sabor de seus lábios.
Demorou um tempo até trocarmos nosso “oi, tudo bem?”, mas após o primeiro contato, lembro-me de algumas conversas soltas, risadas, alguns “você fez o trabalho de português?”. Eu era a única da sala que se dava bem com a professora, e ele achava isso engraçado. Ele dizia que ela me amava e fazia isso parecer a coisa mais bizarra do mundo. Eu gostava da forma como ele sorria para mim. Estudamos juntos para as provas bimestrais e logo todos já nos olhavam com aquele sorriso de quem prevê um romance no ar.
Durante uma conversa no MSN, abrimos o jogo. “Gosto de você”, eu disse. “Gosto de você também”, respondeu ele. No colégio, andávamos de mãos dadas e participávamos de todas as conversas como um casal. “Festa no sábado? Ah, Bruna e eu estaremos livres. Podemos ir, sim. O que acha, amor?”. Ele fazia questão de me avisar sempre que saía com os amigos e nunca exigiu nada de mim e eu procurava sempre deixá-lo fazer parte da minha vida. Quando eu chegava em casa, depois da escola, mandava uma mensagem, à pedido dele, para avisar que estava bem, almoçava e dormia um pouco. Quando acordava, ele estava no MSN me esperando. Conversávamos a tarde inteira e parte da noite. Na hora de dormir, outra mensagem de ‘boa noite’. E assim era a nossa rotina. Aos sábados, após o curso de espanhol, ele passava de bicicleta em frente à minha casa, esperando que eu aparecesse na janela. Ele nunca tocava a campainha e sempre tentou fazer parecer que estava passando ali por mero acaso, pois tinha medo de me sufocar nessa relação. Relação essa que durou quase três anos... sem ao menos um único beijo lábios nos lábios.
Sempre que conversávamos sobre nossa relação, concordávamos que era especial demais para que nosso primeiro beijo fosse à porta da escola. E quando combinávamos algo para o final de semana, alguma coisa atrapalhava nossos planos. A verdade é que, no fundo, dominava o receio de que a magia de nossa relação acabasse com o primeiro beijo. Gostávamos daquela simplicidade e inocência. Gostávamos de ser ‘o casal mais fofo da escola’. Dois anos sem nenhum desentendimento.
Quando decidimos tornar as coisas mais sérias, assumir o namoro e, finalmente, dar nosso primeiro beijo, tudo saiu do lugar. Havia um trabalho em grupo para apresentar na aula e nós dois estávamos em equipes diferentes. Meu grupo, composto por cinco pessoas, começaria a fazer o trabalho na casa do meu melhor amigo, no sábado. Ninguém, além do dono da casa e eu, apareceu. Anoitecemos tentando fazer a quatro mãos um trabalho que exigia dez. Na semana seguinte, pouco falei com meu namorado platônico. Ele estava viajando e só voltaria em três dias. Na sexta, ele estava frio comigo e não respondeu minhas mensagens no final de semana, nem apareceu no MSN. Quando a segunda-feira chegou, ele me pediu para ser sincera e perguntou se houve alguma coisa entre meu amigo e eu, durante o sábado em que estivemos fazendo o trabalho. Respondi a verdade. Nunca houve nada.
Parecia que estava tudo bem, mas ele não escondia os ciúmes todas as vezes em que eu me aproximava do meu amigo. Nunca o vi agir assim. Ele não era ciumento. Intrigada com tudo aquilo, questionei sua atitude. Ele confessou que tinha ciúmes quando me via com aquele cara e disse que os boatos de que houvesse algo entre nós foi espalhado por ele mesmo: meu melhor amigo. Fiquei chocada com aquela história. Mais chocada ainda quando ele me disse que os boatos não se limitavam a apenas algumas trocas de beijos. Meu amigo havia contado, com detalhes, sobre como tivemos uma ‘noite prazerosa’. Aquilo não era verdade. Não poderia ser. Procurei meu amigo esperando que as coisas se esclarecessem e que tudo não passasse de um mero mal entendido. Ele negou ter espalhado qualquer boato. Meu erro foi acreditar nele.
Tudo acabou: as conversas, as risadas, as mãos dadas, as mensagens, as ligações, o MSN, os sábados de bicicleta em frente à minha casa... ele foi embora. Por três longos anos ele havia me excluído da minha vida. E até hoje não sei dizer se foi por ele ter acreditado nos boatos ou por eu ter acreditado no meu (ex) amigo ao invés dele. De qualquer forma, eu o traí. Traí sua confiança. Três anos depois e eu ainda procurava nos lábios de outros, o sorriso dele. Procurava nos olhares de outros o mistério do olhar dele. E durante esses três anos, nos encontramos, vez ou outra, pela cidade, mas ele sempre desviava o olhar e, se possível, até mesmo o caminho.
Eu havia me mudado para a capital há um ano, quando ele me procurou e voltamos a conversar, como antigamente. Nunca mencionamos sobre os boatos e nem o nome do imbecil que um dia chamei de amigo, mas ele perguntou se eu ainda sentia algo por ele. “Além de Anne Hathaway, você é a única pessoa com quem já sonhei em me casar. E nada mudou”, respondi, com um sorriso nos lábios, como quem faz uma brincadeira com fundo de verdade. E era verdade, mas na época eu estava enrolada em um relacionamento bastante complicado. Fiquei solteira, mas ele estava namorando outra pessoa. Então comecei a sair com outra. Quando estivemos solteiros numa mesma época, marcamos um encontro. Infelizmente não deu muito certo, pois como não nos víamos há meses, decidimos que cada um levaria um amigo. Minha amiga e o amigo dele se estranharam bastante e a noite terminou de forma cômica e trágica, ao mesmo tempo. Passamos mais um tempo sem contato e eu engrenei em outro relacionamento, mas, diferente dos demais, esse foi mais sério e, pela segunda vez, sonhei com casamento. Ele também estava com outra pessoa e aparentava uma felicidade tamanha. Fiquei feliz por ele. Agora eu não estou mais namorando. Ouvi dizer que ele também não.
Há algumas semanas fui visitar uma amiga e trocamos relatos de nossas vidas dos últimos dez anos. Contei a ela a história de meu namorado platônico e ela me falou que este era um romance inacabado e que eu deveria experimentar seu beijo. Com esse beijo, eu poderia finalizar a nossa história ou, finalmente, destravá-la. Somente com o beijo, eu saberei dizer se ele está apenas em minha mente, ou também em meu coração. A conversa com a minha amiga deu origem à minha ideia de escrever sobre meus romances inacabados, e, sem dúvida, este é o mais importante de todos, mas deu, também, origem a um importante objetivo em minha vida: beijá-lo.