O Beija-flor Imagem: Google (editada) Ela tinha o poder de dominar o sentimento dos outros e conquistar a todos. Bastava adentrar ...

Romance Inacabado VIII

Por | 09:48

O Beija-flor
Imagem: Google (editada)

Ela tinha o poder de dominar o sentimento dos outros e conquistar a todos. Bastava adentrar à sala e logo sua presença fazia com que mais nada importasse. Se uma reunião de negócios estivesse acontecendo, os executivos deixariam de negociar. Se uma aula estivesse sendo dada, o professor não se importaria em sonhar com aquela aluna. Se um concerto estivesse sendo executado, os músicos deixariam os instrumentos no palco e correriam ao seu encontro, no meio da multidão. Ela chamava a atenção de todos. E ela chamava a minha atenção... em silêncio.
Lembro-me bem de quando a conheci: março de 2010. O dia, não sou capaz de especificar, mas sei que foi numa quinta-feira. Há fotos desse momento. Ainda hoje olho para elas e penso: uau, nesse época eu não imaginava o que poderia nos acontecer. E aconteceu tanta coisa... um ano depois de nos conhecermos.
Sua pele morena clara, seus olhos castanhos, escurecidos e extremamente redondos, cachos avermelhados e lábios convidativos, risonhos, vermelhos. Essa era a garota que, por muito tempo, era apenas a Jornalista dos meus sonhos. Essa era a garota que, com o tempo, chamei de Meu querido Beija-flor, uma alusão a um verso da música de Cazuza: “eu protegi teu nome por amor, em um codinome Beija-flor”. Antes que me perguntem, devo esclarecer: não, não era amor! Talvez eu possa tomar a liberdade, já que mestre Cazuza não está aqui para fornecer-me tal autorização, de modificar um pouco a letra e dizer que protegi seu nome por um carinho especial. Era isso que eu sentia por ela: um carinho especial e, acima de tudo, uma sede insaciável.
Pelo menos eu achava que era insaciável. Eu sonhava com ela, sim, mas jamais esperei que meu sonho se tornasse real. Tanto não esperava que, quando aconteceu, demorei-me muito para acordar. Ela me lançou vários sinais e eu nunca os apanhava. Hoje, olhando para trás, consigo enxergar perfeitamente cada um desses sinais, como aquela vez em que fomos assistir filme na casa de uma amiga em comum e, após o filme acabar, enquanto a dona da casa saía para fumar na varanda e as luzes continuavam apagadas, ela se aproximou de mim, o suficiente para que respirássemos o mesmo ar e  para que eu sentisse seu doce hálito, e eu, ao invés de encurtar ainda mais a distância de nossos lábios, me afastei. Mais do que isso, saí da sala e deixei-a sozinha. Não percebi, na hora, o que havia acontecido. Somente ao chegar em casa, a cena foi repassada em minha cabeça e então senti a palma da minha mão deixar uma marca vermelha em minha testa por alguns minutos. Como eu pude ser tão cego? Comecei a reparar que, desde o início daquele ano, ela me lançava sinais: no ponto de ônibus, nas mensagens, nas redes sociais, nas indiretas (e eram muitas), na faculdade...
Alguns dias depois, ela me contou, abertamente: “lembra quando eu disse que estava confusa em relação a três pessoas? A primeira era apenas uma paixonite, mas já passou. A segunda é comprometida e já esqueci. E a terceira é você...”. Envolvi-me com a jornalista. Entreguei-me àquela história. Nosso primeiro beijo foi numa tarde chuvosa. Passamos a manhã presos na biblioteca e, cansados de esperar uma trégua, decidimos sair mesmo embaixo de chuva. Estávamos já encharcados, mas nem nos importamos. Ríamos. Ríamos cada vez mais. Trocamos olhares entre um riso e outro, paramos de correr e, ali mesmo, no meio da rua, sob a chuva, nos beijamos. Sabem aquela cena de filme em que a câmera gira em torno do casal enquanto uma romântica música toca ao fundo? Foi nesse momento que essa cena aconteceu em minha vida. Quase posso ver-me abraçando-a, beijando-a, apaixonando-me.
Não foi preciso dizer nada, mas nós dois sabíamos que melhor seria se nosso romance permanecesse em silêncio. E foi então que o verso da canção de Cazuza entrou na história e ela deixou de ser a Jornalista dos meus sonhos para se tornar meu Beija-flor. Meu querido Beija-flor.
Porém, como um castigo dado por Cazuza, talvez por eu ter usado o verso de sua canção em minha história, logo a letra inteira, através de seus versos soltos, resolveu adentrar em minha vida: “Pra que mentir, fingir que perdoa? Tentar ficar amigos sem rancor. A emoção acabou. Que coincidência é o amor. A nossa música nunca mais tocou”. A emoção acabou... quando eu descobri que não apenas eu, mas outros dois a amavam em silêncio. E eram correspondidos por ela. Aqueles mesmos dois caras que ela falou no início, e que deixou bem claro que não havia mais nada. Ela enganou a nós três ao mesmo tempo e ainda esperava que ficássemos amigos sem rancor.
A raiva consumiu-me por completo. E mais uma vez eu parei para analisar os sinais. Como eu pude ser tão cego? Ela praticamente saía com a faculdade inteira! Todas as vezes que eu a encontrava nos corredores, ficava imaginando em quem ela daria o próximo bote. Ela usava, em todos nós, a mesma artimanha: o olhar amigo, o sorriso espontâneo, o abraço carinhoso, as palavras de apoio... “Pra que usar de tanta educação pra desfilar terceiras intenções, desperdiçando meu mel, devagarzinho, flor em flor? Entre os meus inimigos, Beija-flor”.
Classifiquei-a como Romance Inacabado, mas não de uma forma que deixe brecha a uma possível ‘reconciliação’, mas como uma maneira de especificar que jamais me esquecerei dessa história e que, de certa forma, ela continua viva em meu coração, afinal, uma coisa positiva saiu dessa história: graças ao malvado Beija-flor, ganhei os melhores amigos que eu poderia ter. Iludidos por um mesmo sonho, criamos uma eterna e fiel relação em que temos a certeza de que nada, nesse mundo, poderá abalar. E por tal motivo, tal presente fornecido, não sinto mais raiva do Beija-flor. Pelo contrário: sinto um carinho ainda mais puro! Sim... eu te disse: Ela tem o poder de dominar o sentimento dos outros e conquistar a todos.
***

“Não responda nunca, meu amor, pra qualquer um na rua, beija-flor. Que só eu que podia, dentro da tua orelha fria, dizer segredos de liquidificador. Você sonhava acordada, um jeito de não sentir dor, prendia o choro e aguava o bom do amor”
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