O amor de verão
Praia do Cibratel I - Itanhaém. Imagem: Bruna Sousa |
Quem nunca viveu um romance de férias ou um amor de verão não sabe o que é viver. Aquela alegria, a vontade de se jogar no mundo sem se preocupar com o amanhã, sem se preocupar com os horários do colégio ou da faculdade ou do trabalho, a certeza de estar fazendo o momento valer a pena, uma certa dúvida se a relação vai subir a serra ou não, mas sem deixar que afete o romance... Ah, sim. Eu tive um. Na verdade, não sei se posso definir como amor de praia, propriamente dito, era, na verdade, uma relação de amor e ódio nos verões da minha vida.
Lembro-me como se tivesse acontecido no verão passado, mas já se foram seis. Todas as férias eram a mesma coisa: minha amiga Loira descia a serra e se hospedava no hotel ao lado da minha casa. Encontrávamos a nossa amiga Morena e passávamos o dia juntas: na praia, no quiosque, no shopping, na praça, no boliche, no biliar... éramos apenas nós três, mas aquele ano foi diferente. Minha irmã resolveu andar conosco. Numa certa tarde, caminhando na ciclovia com as meninas, de repente deixo de prestar atenção na conversa e observo, fixamente, uma garota Ruiva tomando uma ducha no quiosque. Ela estava acompanhada de um casal de japoneses. As meninas, ao perceberem meu silêncio, também notaram as três figuras que saíram do quiosque e atravessaram a avenida em direção ao bairro. Elas pareciam tão interessadas quanto eu, então sugeri: “Vamos seguir”. Indiscretas, deixamos a Ruiva e os japoneses notarem nossa presença. Tentamos, tardiamente, disfarçar, mas os perdemos de vista. Procuramos pelo bairro todo e nada de encontrá-los.
No dia seguinte passamos pelo mesmo quiosque e eles estavam lá. A Ruiva olhava para nós. Nós olhávamos para ela. “Você viu primeiro! Vai falar com ela”, disse minha amiga Loira, empurrando-me de forma nada sutil. “Eu vou, mas vocês vão comigo”. Não lembro bem qual foi a primeira coisa que eu disse, mas lembro de ter comentado que nunca os vira por ali antes. De fato, era a primeira vez deles naquela praia. A Ruiva nos recebeu muito bem, mas logo de cara já me veio a primeira cócega na orelha... deixe-me explicar: sempre que estou nervosa ou encabulada, começo a coçar a ponta da orelha para me distrair. É como contar até dez para não socar uma pessoa. Funciona. A Ruiva disse que tinha certeza de que iríamos chegar nela. “Convencida” – pensei - “perdeu o encanto”. Nos apresentamos e ela disse que eram irmãos, mas ela era adotada. Não sei explicar o porquê, mas aquilo não me convenceu. A Loira os convidou para jogar sinuca no hotel conosco. Eles aceitaram, mas disseram que iam passam em casa, tomar banho e voltariam mais tarde. Não apareceram.
No outro dia, minhas amigas e eu fomos caminhar na praia. Logo ouvimos nossos nomes ao longe: a Ruiva e os Japoneses. “Podemos acompanhar vocês?”, perguntou a Ruiva. “Claro”, respondeu a Morena. A Loira começou a fazer perguntas do tipo “o que vocês fazem?”, “de onde são?”, “estão hospedados em casa ou hotel?”, “namoram?”. Os Japoneses mal abriam a boca. Apenas concordavam ou discordavam e riam de alguns comentários, como se fossem anexos de nossas conversas. Eles não eram irmãos. Eram todos amigos de infância. “Foi uma piada”, disse a Ruiva. Não sou boa em piadas, mas não achei nada engraçada. Aliás, ela era cheia de piadas sem graça que só ela entendia. Minha orelha vivia coçando perto dela.
Voltamos para o quiosque, tomamos sorvete, jogamos sinuca no hotel, voltamos para a praia no fim de tarde e fomos à pizzaria à noite. Não foi preciso dizer, mas logo ficou implícito: a Ruiva e a Japonesa eram lésbicas e o Japonês era gay. Ele ficou bêbado com apenas um copo de cerveja e criou o que virou bordão do grupo: “por você eu viro hétero”. Havia uma mesa, próxima de nós, com pelo menos seis caras fortes e bonitos. Um deles, talvez o mais bonito de todos, chegou a nossa mesa nos convidando para juntarmos a eles. Outro bordão, dessa vez dito pela Loira: “é tudo gay! Menos ela, pode levar!”, apontando para a minha irmã, às gargalhadas. Envergonhado, o rapaz pediu desculpas pelo inconveniente e voltou para o lugar dele.
Passamos o restante da semana nessa rotina: praia, bicicleta, skate, sinuca, praia, pizzaria, sinuca, praia de novo... eu não suportava a Ruiva, não suportava mais tantas histórias que ela contava, se gabando sobre cada conquista que fizera, sobre todas as ficadas, todos os foras que deu. Toda vez que minhas amigas e eu falávamos dela, ou quando ela se aproximava, cantávamos, carinhosamente: “eu tinha uma galinha que se chamava Marylou”... mas eu estava atraída por ela. Em uma tarde, ela pediu para acompanha-la à praia. “Qual é a da sua amiga Loira?”, perguntou. Respondi, de forma seca, que ela estava interessada na Japonesa. Ela riu. Por um minuto achou que eu estivesse brincando e disse que não achou que a Japonesa fizesse o tipo da Loira. E que ela estava interessada na minha amiga. Ao contar a conversa para minha amiga, me surpreendi com o ataque de riso dela. Após tomar fôlego, ela brincou: “que círculo maluco, meu! Você tá afim da Ruiva, que tá afim de mim, e eu tô afim da Japonesa, que tá afim de você! ‘Toim’ pra quem ficou de fora! Aposto que ninguém vai pegar ninguém nesse verão!”. As férias chegaram ao fim e minha amiga estava certa. Todos foram embora e acabei não me despedindo de ninguém.
No ano seguinte, eu estava sentada na calçada da minha casa, triste, pois tinha acabado de falar com a Loira, por telefone, e ela só passaria dois dias comigo. Minha amiga Morena estava ocupada e só nos veríamos aos fins de semana. Minha irmã fez novos amigos e mal nos víamos. Os amigos da cidades estavam todos viajando, como sempre fazem nas férias. Meu primeiro verão completamente só. Eu estava distraída, pensando em como aproveitar meu tempo, quando ouço uma voz ao meu lado: “Senti saudade”. Era a Ruiva, com a pele ainda mais branca que eu me lembrava, o cabelo mais avermelhado que antes e um vestido leve bege. A Japonesa resolveu visitar a família no interior do Estado e o Japonês foi passar as férias nos Estados Unidos. Seríamos apenas a Ruiva e eu.
Estávamos tomando água na cozinha da minha casa, após passar a tarde toda andando de bicicleta, quando a Ruiva me beijou. Quase deixamos as garrafinhas de água caírem ao chão. Ouvimos passos e disfarçamos. Não comentamos aquele beijo. À noite, nos encontramos com minha amiga Morena e minha irmã. Fomos ao cinema assistir Atividade Paranormal. A Ruiva sentou-se ao meu lado e passou o filme inteiro segurando a minha mão. No final, quando o filme quase se torna interessante, ela se assustou e me agarrou, com medo. Senti a troca de olhares e sorrisos entre minha irmã e minha amiga, do tipo: “huummmm”. Terminamos a noite na sorveteria e já não escondíamos mais: estávamos ‘ficando’.
No Réveillon, ela tinha uma festa na casa da família dela e eu tinha uma festa fechada na casa de uns amigos, com o prefeito da cidade. Eu não poderia faltar a essa festa e não poderia levar ninguém de fora, também, então decidimos que cada uma marcaria presença em nossas respectivas festas e depois da virada do ano fugiríamos para a minha casa. Exatamente na hora marcada nos encontramos no portão da minha casa. Não vou contar aqui os detalhes daquela noite regada a muito champanhe, mas posso dizer que os fogos de artifício ainda explodiam lá fora, enquanto ali dentro uma paixão também explodia...
Estava quase amanhecendo, eu deitada nos braços dela, no sofá da sala, quando a ouço dizer: “preciso te contar uma coisa”. Paranoica do jeito que sou, imaginei mil coisas antes dela completar a frase, mas eu não poderia adivinhar o que ela tinha para me dizer. Levantei-me e olhei em seus olhos, aguardando o fim da frase. “Eu namoro há quatro meses”, completou. Demorei alguns segundos para conseguir raciocinar direito, então, assim que compreendi o que de fato havia acontecido, pedi que fosse embora. Não que eu estivesse apaixonada ou fizesse planos para além das férias, mas traição é algo que eu não consigo compreender e aceitar.
Dias depois, minha amiga Loira chegou. Eu não falava com a Ruiva há mais de uma semana, mas a minha amiga insistia para reunirmos as meninas e aproveitarmos os dois dias que ela tinha com a gente. Jogamos sinuca, fomos à praia, à sorveteria, ao cinema... A Ruiva e eu nos tratamos como no dia em que nos conhecemos: com vontade de estarmos ali, mas com certo receio de nos aproximarmos. Antes de partir, a Loira passou na minha casa para entender o que estava acontecendo. Contei a história para ela e logo a ouvi cantar: “eu tinha uma galinha que se chamava Marylou”. Não pude deixar de rir e entender que a Ruiva era exatamente daquele jeito e que se eu aceitei ficar com ela mesmo assim, não podia culpá-la por nada.
Aquele foi nosso último verão juntas. Cada uma seguiu seu caminho. A Ruiva, os Japoneses, a Loira e eu entramos na faculdade. Minha irmã e a Morena começaram a trabalhar. Ainda nos falamos todos pelas redes sociais. Vez ou outra, quando passo pela Avenida Paulista, na capital, vejo, de longe, a Ruiva com seus novos amigos. Sei que, algumas vezes, ela também me vê, mas nunca nos cumprimentamos. No último verão, passei pela casa da família dela, na praia. A mãe e as tias, ao me verem, me cumprimentaram saudosamente. Por um momento pensei que ela estivesse ali, mas logo me lembrei que ela viajou com a namorada para as praias do nordeste. Sorrio ao lembrar. É a sétima namorada em quatro anos. “Eu tinha uma galinha que se chamava Marylou... um dia fiquei com fome e papei a Marylou”...